BRIGA NA CACIMBA

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Mariano B. Marques

 Eu, oito anos de idade.

Minha família e eu  morávamos num pequeno lugarejo incrustado no meio da mata, no  Sul do Maranhão, Nordeste do Brasil.

Carros? Só quando um caminhão esporádico passava na estrada de areia cortando o povoado. Aí todo mundo corria para ver o ilustre visitante sobre rodas. A garotada se divertia correndo atrás e engolindo poeira. E eu gostava do cheiro da gasolina.

Avião? Sim, no céu azul distante, tão alto que mais  parecia um pássaro prateado. Mas, curioso!… eu pensava que um dia viajaria dentro de um deles. Meu pai dizia que um só poderia carregar todos os moradores do vilarejo – umas trinta pessoas.  E de uma só vez! Eu só acreditava porque nunca  vi  papai mentir.

Ali, em Canafístula, todos os moradores levavam vida extremamente simples.  Do cultivo braçal do solo, sobrevivíamos. É, só sobrevivíamos! Tínhamos dois inimigos ferozes cujos fantasmas nos aterrorizavam todos os anos: a seca e a fome. Ah, isso era parada dura…

Devido à escassez de água, a cacimba era  o ponto de encontro pela manhã e à tardinha.  Não só de pessoas, mas também de muitos pássaros e animais – bodes, cabras, porcos, jumentos e vacas. Gente e bichos, todos em busca da preciosa água. Mas havia harmonia, pois cada um conhecia a necessidade do outro.

Na cacimba, acontecia de tudo:  rapazes e moças se paquerando, mulheres lavando roupa e fuxicando da vida alheia, meninos e animais brincando ou brigando, e muito mais. Ali era a rádio, o jornal de Canafístula. O casamento de muita gente começava – ou terminava –  na cacimba.

Eu não era  bom de briga, mas peguei algumas boas ali. Uma delas foi com o Antonio do Miguel. Ele era maior e mais forte do que eu. Imagine quem bateu e quem chorou…  Motivo? Acerto de contas de meninos. Na refrega, o meu adversário pega uma pedra, segura-a na mão com firmeza e me golpeia a cabeça. O sangue desce na hora, e ele diz com ares de vencedor, apontando para a minha cabeça:

–         Viu o que te fiz?

Não, ainda não tinha visto. Ansioso, passo rapidamente a mão na cabeça. E o que vejo? Sangue.

A minha fúria infantil virou dentro de mim um vulcão em erupção.  Descontrolado, parto para cima dele e recebo mais fortes e certeiros bofetes na cabeça e no rosto. Logo chega a turma do “deixa disso” e – graças a Deus –  aparta a briga. Eu queria massacrá-lo! Lágrimas de ódio e desejo de vingança inundam o meu rosto. Apanhara feio na presença de todo mundo.. Sentia-me humilhado, minha autoestima no chão. Então, o consolo íntimo de uma mente envenenada:

–         Quando eu crescer, vou me vingar!..

No meu coração infantil ferido, plantei a mágoa profunda.  Algum dia, em algum lugar, eu retribuiria o ultraje. Três anos depois, meu pai me levou para tratamento de saúde na capital, São Luís. Terminei ficando por lá com meu irmão mais velho, solteiro, que já morava lá. E nunca mais vi o Antonio.

Eu já era adulto, e ainda carregava no peito a mágoa da humilhação.   Quando nos encontrarmos, irei à desforra – pensava.

Só que meu pai, nas visitas anuais que me fazia em São Luís, lançou a semente divina  no meu coração: o evangelho de Cristo. Ela nasceu numa movimentada noite de domingo de Carnaval, no templo da Assembleia de Deus da Rua do Passeio, número 981. Naquela noite, rendi a minha vida ao divino Mestre após o ungido sermão do saudoso pastor Estêvam Ângelo de Sousa. Agora, Jesus Cristo era o meu Salvador e Senhor.

Nas semanas que se seguiram à minha conversão,  eu sentia um gozo espiritual intenso e abundante na minha alma. Era como uma fonte de águas vivas jorrando no meu interior.  E a consciência de me sentir perdoado dos meus pecados e amado por Deus era tão deliciosa que logo perdoei plenamente o Antonio. Abri mão do direito que eu julgava ter de retribuir pela  dor moral que ele me havia causado lá na velha Cacimba do Ferreira, na infância.

Vinte e cinco anos depois,  Antonio e eu nos encontramos, em Brasília. Eu já era um homem homem transformado pela graça de Deus. E, melhor ainda, ambos já éramos casados e tínhamos filhos. E, que satisfação: ele também já servia o Senhor Jesus.  Então, ao invés de ódio e briga, foi só festa e regozijo pelo reencontro.

Claro que a lembrança da nossa briga estava nítida na minha mente, mas a negra semente da mágoa já não estava lá. Em seu lugar, a nova semente plantada por meu pai  e fecundada pelo Espírito Santo havia nascido e enchido o meu coração do amor de Deus. De velhos rivais, agora Antonio e eu éramos irmãos.. Agora fazíamos parte da família de Deus! Que maravilha! Conversamos muito, relembramos nossas estripulias dos velhos tempos de infância, e rimos pra valer ao comentarmos a briga.

Você vê, perdoar e amar é uma experiência profundamente libertadora. Enquanto guardei a mágoa, a minha alma viveu como um pássaro na gaiola no escuro em relação ao Antonio. Concedido  o perdão, a gaiola se desfez e a luz brilhou.  E no meu íntimo, minha alma alçou voo para a liberdade infinita em Deus.

A Bíblia ensina que Deus nos perdoa em Cristo para, em Cristo, perdoarmos as pessoas que nos ofendem. Desde que aprendi a perdoar, desfruto de deliciosa liberdade interior. É maravilhoso!

Podemos guardar a mágoa por décadas, e até por toda a vida. E ela influencia, sem percebermos, tudo o que somos e fazemos. E só o perdão nos liberta dela e seu veneno.

E aí,  você quer continuar com a sua alma na gaiola e no escuro?

“Sejam bondosos e compassivos uns para com os outros, perdoando-se mutuamente, assim como Deus perdoou vocês em Cristo. Efésios4.32.

Deus abençoe você.

 ____________

Nota: Cacimba, na região onde o texto se situa,  é um poço natural numa nascente de água.

Fonte da imagem: Internet: tribunadonorte.com.br

20 respostas em “BRIGA NA CACIMBA

    • Amigo Marco,
      esta é uma pergunta de implicações amplas. Mas posso apontar algumas razões. É difícil porque somos pecadores, e perdoar não é próprio da natureza humana.A vingança, sim. Portanto, é difícil porque implica abrir mão do direito ferido ou negado, o que também é contrário à nossa natureza. É difícil porque implica humildade de espírito, que é o que nos leva a abrir mão desse direito ferido. É difícil porque não entendemos que não conseguimos perdoar por nós próprios. É Deus, pelo seu Espírito, quem produz esse perdão dentro de nós. É difícil porque implica obediência a Deus no que diz respeito a perdoar o ofensor. É difícil porque implica submissão ao Espírito Santo nesse processo interior de produzir o perdão em nós. Como você sabe, nossa natureza pecadora resiste a todas essas coisas espirituais. Por isso, o fácil é deixar essa natureza pecadora lidar com a situação do jeito que lhe é próprio: reter a mágoa e entesourá-la por anos e anos e até por toda a vida. Então, se queremos obedecer a Deus e perdoar o ofensor, nossa oração deve ser: Senhor, em obediência à tua Palavra, eu perdoo fulano (e descreve a ofensa para Deus). Mas, por favor, produz em mim o sentimento de perdão, pelo teu Espírito. Em nome de Jesus. Amém.

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  1. Muito tocante essa história… E assim mesmo. o perdão verdadeiramente liberta!!!
    E de quebra lembrei das histórias contadas pelo meu pai…
    abraços pr Mariano

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  2. Querido er grande amigo Mariano, saudades!
    Que DEUS esteja contigo hoje e sempre!
    Mariano, que história mais linda!!! Realmente o perdão é libertador!
    Um forte abraço da amiga que te ama, te admira e tem muita saudades dos tempos que trabalhavamos juntos.

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    • Muiiiiiiito obrigado, Jovanira. Aqueles tempos que trabalhamos juntos foram muito enriquecedores pra mim. Já falei isso, e repito: aprendi muito com você. O que conheço de vendas hoje, devo, em grande parte, a você. E obrigado pelo carinho que você sempre teve comigo, desde os tempos da Britânica. Você sempre me tratou de maneira muito especial, e lhe sou muito grato por isso. E é muito bom saber que você hoje serve ao Senhor Jesus Cristo de plena convicção e coração voluntário. Isso me deixa muito feliz. Também admiro muito você e sua capacidade de liderança, que foi Deus quem lhe deu.

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      • Mariano, suas histórias tem o dom de nos transportar positivamente de volta ao passado.
        Naqueles tempos, vivíamos em pobreza extrema, às vezes sem tero o que comer, porém desta forma também éramos felizes.
        Mesmo de vez em quando, tomando uma coça dos meninos maiores, mas aquilo era o que conhecíamos de mundo e aquilo nos bastava.
        Lembro, que também tomei as minhas “refregas”.
        Que bom, que vc. reencontrou o Antonio, muitos anos depois e se divertiram relembrando das antigas brigas. Melhor ainda, saber que foi o nosso pai que te influenciou e que vc. foi tocado por Deus quanto à certeza da sua escolha.
        Que ele continue te abençoando sempre.

        Abraço, do seu brother.

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        • Legal ter o seu comentrio, brother! isso mesmo, Joo: muitas vezes no tnhamos o que comer, mas ramos felizes, muito felizes. Minhas lembranas daquela poca so muito alegres, a despeito da extrema pobreza. Tnhamos essa riqueza interior: a alegria de viver, mesmo tendo quase nada. Isso nos ensina que a felicidade no consiste no ter muito, mas, sim, no viver contente com o que se tem, seja o muito, seja o pouco. Abrao!

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